Francisco Henriques da Silva, Mário Beja Santos. Da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau: Um roteiro. Lisbon: Fronteiras do Caos Editores, 2014. 532 pp. $29.00 (paper), ISBN 978-989-8647-18-4.
Reviewed by Julião Soares Sousa (CEIS20, Universidade de Coimbra)
Published on H-Luso-Africa (March, 2016)
Commissioned by Philip J. Havik (Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT))
From Portuguese Guinea to Guinea Bissau
O livro, Da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau: Um roteiro, da autoria de Francisco Henriques da Silva e Mário Beja Santos, dado à estampa pela Fronteira do Caos Editores em 2014, é, efetivamente, um roteiro (assim o caracterizaram os próprios autores) bibliográfico do que de mais relevante (ainda na perspetiva dos mesmos) se produziu e se escreveu sobre a Guiné (Bissau) em mais de cinco séculos de História. Isto é, se se quiser ser mais explícito, entre o século XV (inícios da expansão portuguesa, a “descoberta” do espaço designado por “Guiné”) e o golpe de Estado de 12 de Abril de 2012, que veio interromper o pleito eleitoral (eleições presidenciais) então em curso, passando ainda por uma reflexão sobre a cooperação entre Portugal e a sua antiga colónia.
Os autores, além deste roteiro, partilha(ra)m também várias experiências: são ambos licenciados em História; cumpriram o serviço militar na Guiné, entre 1968 e 1970, como foram alferes milicianos de infantaria; o primeiro (da Silva), ainda chegou a ser Embaixador de Portugal na Guiné-Bissau, num período “quente,” que foi o da guerra civil de 1998-99.
Estruturalmente, a obra (de 530 págs) é dividida em tres grandes partes que normalmente encerram com sugestões de leitura/leituras complementares e bibliografia considerada indispensável. Uma primeira parte intitulada “Dos Portugueses na Guiné à Guerra de Libertação,” em que os autores relevam a integração da “Guiné” na Senegâmbia pré-colonial e colonial e nos grandes impérios da África Ocidental que se foram sucedendo no tempo, mas também no processo da expansão ultramarina, entre 1415 a 1460; o tráfego negreiro, o comércio atlântico e o papel das companhias comerciais; as fragilidades, durante muito tempo, do domínio português na região, devido à ativa concorrência dos potentados locais, mas também de estrangeiros (ingleses, holandeses, espanhóis e franceses); a autonomização da Guiné relativamente a Cabo Verde ao qual esteve ligado do ponto de vista administrativo até 1879; as convenções luso-francesas que delimitaram as fronteiras do território adveniente com a conferência de Berlim (1884-85); a emergência do nacionalismo guineense e o papel desempenhado por Amílcar Cabral e o seu PAIGC nesse despertar; finalmente, a preparação para a luta armada. Entre os autores em destaque nesta primeira parte contam-se os incontornáveis estudos de António Carreira, Marcelino Marques de Barro, José Joaquim d’ Almeida, Dias de Carvalho, João Teixeira Pinto, Julião Quintinha, Mendes Correia, Orlando Ribeiro, Carlos Lopes, A. Teixeira da Mota, René Pelissiér e Peter Karibe Mendy.
O segundo capítulo encontra-se subdividido em duas partes, de acordo com uma periodização (1963-68, para a primeira, e 1968-74, para a segunda) que consideramos ajustada, mas que ainda assim levanta outros problemas metodológicos associados. Um destes problemas tem a ver com a urgência em definir com critério a data que corresponde, efetivamente, à realidade da guerra da Guiné e com a qual se deve operar. Isto é, se o ano de 1961, que é aquele em que o MLG perpetrou os primeiros ataques no noroeste da Guiné (S. Domingos e Varela) ou se, ao invés, se deve considerar apenas os ataques do PAIGC ao aquartelamento de Tite, em Janeiro de 1963, encarado pela generalidade da historiografia como o mês e ano do início das hostilidades contra a presença portuguesa na Guiné.
Foi, todavia, com base na assunção da segunda periodização (i.é., 1963-74), perfilhada, entre outros, por Fernando Policarpo no seu livro A Guerra na Guiné: 1963-1974 (2006), que da Silva e Beja Santos foram enunciando, através de uma leitura diversificada e muito abrangente, várias aspetos dessa guerra: a realização de uma importante reunião no interior da Guiné que passou para a história como o I Congresso do PAIGC (Cassacá, Fevereiro de 1964); a intensificação da guerra; a sua “africanização”; o papel da propaganda e o impasse que lhe antecedeu, como que abrindo caminho para o estádio ulterior desse mesmo conflito marcado pelo consulado de Spínola e, do ponto de vista militar, por operações espetaculares e de grande alcance, que sempre que se justificou estenderam-se aos países vizinhos (ataques a aldeias fronteiriças senegalesas, “Operação Mar Verde” e Kumbamori, no Senegal, já na fase final da guerra).
O livro aborda ainda os vários dilemas coloniais de Portugal na Guiné: a tentativa que os autores consideram pouco série de criar um governo da Guiné com os naturais e que tinha sido mais ou menos acordado com Benjamin Pinto Bull; as tentativas para reformar o regime, desde 1951, com as alterações constitucionais, mas também com a aprovação da Lei Orgânica do Ultramar e do Estatuto do Indigenato (1953) revogado em 1961. Abordam ainda à progressão da guerrilha no leste da Guiné, a partir de 1964, ainda que com alguma resistência de certos régulos fulas e mandingas como Sene Sane, de Canquelifá, posteriormente perseguido e morto pelo PAIGC.
Da Silva e Beja Santos reportam-se também a alguns dos acontecimentos que marcaram a guerra da Guiné, no início dos anos 70, como as tentativas de aliciamento de algum sector dos guerrilheiros do PAIGC no chão manjaco; a intensificação da política “Por uma Guiné Melhor,” com várias iniciativas do Governo da província, entre as quais a realização dos Congressos do Povo, a que se deve agregar, por outro lado, no domínio militar, um conjunto de operações realizadas além-fronteiras como a “Operação Mar Verde.” Na opinião dos próprios autores esta operação teria falhado “parcialmente” nos seus propósitos, estimulando ainda mais a censura e o isolamento internacionais que já impendiam sobre Portugal. Outros dois aspetos enfatizados pela obra em análise têm a ver com as diligências dos beligerantes no sentido de abrir caminho a um cessar-fogo e abertura de negociações, numa altura em que o PAIGC e Amílcar Cabral se preparavam para uma eventual proclamação unilateral da independência da Guiné. Com esse objetivo, antecedendo até a importante visita de uma Missão das Nações Unidas às chamadas “áreas libertadas” em abril de 1972, teriam organizado, inclusivamente, eleições para a escolha de delegados, tendo em vista a constituição da Assembleia Nacional Popular. Contudo, no terreno militar os dois contendores procuram passar à iniciativa. Nestas ações, os autores do roteiro destacam, por exemplo, a tentativa de reocupação do Cantanhez (operação “Grande Empresa”), em finais de 1972, quase adivinhando as intenções do PAIGC que, na mesma altura, tinha projetado uma grande ofensiva militar com o intuito de ocupar Guiledje, enquanto outras forças fariam ataques de diversão em Gadamael e em Guidaje.
A segunda parte termina, tal como a primeira, com cerca de três dezenas de sugestões de leitura e análise crítica. Refira-se, entre outros: Os últimos Governadores do Império (1994), coordenada por Paradela de Abreu, com depoimentos, para o caso concreto da Guiné, de ex-governadores Álvaro da Silva Tavares (1956-58), António de Spínola (1968-73) e Bettencourt Rodrigues (1973-74); uma perspetiva da guerra da Guiné vista através do Boletim Geral do Ultramar; a revista Ultramar, que ao longo dos anos contou com a colaboração de Banha de Andrade, António Carreira, Rogado Quintino, entre muito outros, e que no seu número de Maio de 1968, dedicado exclusivamente à então Província da Guiné, traz um interessante artigo de Luís Fernando Dias Correia da Cruz sobre a subversão na Guiné; um destaque ainda para o célebre Depoimento de Marcello Caetano, publicado no exílio brasileiro, em que sobressaem divergências insanáveis que marcaram a sua difícil relação com Spínola, relativamente ao problema da Guiné; Silva Cunha e o seu livro O Ultramar, a Nação e o 25 de Abril (1977); Uma longa entrevista do Marechal Costa Gomes, publicada com o título Costa Gomes, O Último Marechal (1998), livro que também põe a descoberto uma série de antinomias políticas (e até ideológicas) entre as elites políticas e militares portuguesas quanto ao chamado ultramar; outro destaque vai também para uma coletânea de outros dezoito depoimentos intitulada Os Últimos Guerreiros do Império, coordenada por Rui Rodrigues, dada à estampa pela Editora Erasmos em 1995, com destaque para os testemunhos de Hélio Felgas, do fuzileiro comando João Seco Mamadu Mané, do coronel Maurício Saraiva, do tenente-coronel Nogueira Ribeiro, do General Almeida Bruno, de Marcelino da Mata, entre muitos outros oficiais e sargentos ex-combatentes; para a fase final da guerra, os autores não olvidaram as memórias de José de Moura Calheiros, A Última Missão (2010), considerado por muitos como uma das melhores obras sobre a guerra colonial; uma interessante biografia de Alpoim Calvão, Honra e Dever (2012), que oferece uma nova e ampliada perspetiva analítica sobre a fase final da guerra na Guiné e sobre o assassinato de Amílcar Cabral. O roteiro de da Silva e Beja Santos analisa ainda Os Anos de Guerra, de Carlos de Matos Gomes e Aniceto Afonso, entre muitos outros autores portugueses e também estrangeiros: A. J. Venter, Gérard Chaliand, Lars Rudebeck e Leopoldo Amado, passando pelas memórias de antigos chefes de guerrilha do PAIGC Luís Cabral e Aristides Pereira.
Na terceira parte, que abarca o período que vai da “independência plena” (a expressão é dos autores), isto é de outubro de 1974 ao golpe de Estado de 2012, apresenta, logo na nota introdutória que abre a secção, uma nova periodização que, não sendo propriamente um exercício fácil, tendo em conta a profusão dos acontecimentos que marcaram a existência da Guiné enquanto país soberano, não deixa de ser, contudo, discutível. Os próprios autores reconhecem a arbitrariedade em proceder a essa periodização. Em síntese, nesta terceira parte, da Silva e Beja Santos fazem um apanhado de grande parte das obras que na sua perspetiva permitem formar uma ideia sobre os 38 anos de vida da Guiné-Bissau independente. Isto é, desde os tempos de “inocência, dos sonhos e das promessas,” como os caracterizou Antonio Pinto França, às desilusões e à decomposição da sociedade guineense, advenientes com as várias e recorrentes crises que o país de Amílcar Cabral tem sofrido e que se agravaram, logicamente, com o golpe de Estado de 2012.
Os autores reuniram, portanto, vários trabalhos a começar pelos de Carlos Lopes (Etnia, Estado e relações de poder na Guiné-Bissau e Corte Geral [1982]), do Embaixador António Pinto França (Em Tempos de Inocência: Um diário da Guiné Bissau [2006]), Joannes Augel and Carlos Cardoso (Transição Democrática na Guiné-Bissau [1996), Alvaro Nóbrega (A Luta pelo Poder na Guiné-Bissau [2003]), Julião Soares Sousa (Guiné-Bissau: A destruição de um país [2012]), Queba Sambú (Ordem para matar [1989]), o Testemunho (2011) de Filinto Barros, sem dúvida, uma obra polémica, pelas abordagens que tece relativamente ao período pós-colonial e às administrações Luís Cabral e Nino Vieira que responsabiliza pelo desastre a que conduziram a Guiné-Bissau, responsabilidade a que nem mesmo o ex-Presidente da Guiné-Bissau, Koumba Iala, falecido em 2014, escapou. Os autores também reservaram longas páginas relativamente ao conflito de 1998-99, as suas causas (económicas, sociais, políticas, militares e até pessoais) e consequências e uma extensa rubrica sobre os trabalhos que têm sido publicados sobre Amílcar Cabral, considerado “o único líder dos movimentos independentistas das ex-colónias portuguesas que deixou uma obra teórica importante e que sobressaiu entre os demais pela sua dimensão de verdadeiro estadista, defendendo um socialismo «sui generis», adaptado aos circunstancialismos locais e à idiossincrasia guineense, numa visão marxista «à l’africaine», mas aparentemente eivada de humanismo” (p. 381). No rol destes trabalhos os autores destacam: Patrick Chabal, António E. Duarte Silva, Mário Pinto de Andrade, José Pedro Castanheira, Carlos Matos Gomes e Aniceto Afonso, António Tomás, Julião Soares Sousa, Tomás Medeiros, Dalila Cabrita Mateus, Oleg Ignatiev e Anatoli Nikanorov, Aquino de Bragança e Gérard Chaliand.
Há ainda um tópico sobre a literatura guineense que não sendo propriamente um fenómeno recente também não pode ser considerada uma literatura com uma certa tradição histórica. No campo da poesia os autores distinguem sobretudo os seguintes poetas: Amílcar Cabral, Vasco Cabral, Helder Proença, Agnelo Regalla, António Soares Lopes Júnior, José Carlos Schwartz, Pascoal D’Artagnan, Francisco Conduto, Carlos Alberto Alves de Almada, Jorge Cabral, Nagib Jauad, Félix Sigá, Domingas Samy e Eunice Borges, Filomena Embaló, Odete Semedo; e na área de Contos e ficções: Abdulai Silá, Carlos Edmison Vieira, entre muitos outros de gerações diferentes (mais velhos e mais novos), mas que, de acordo com os autores, apresentam algo de comum: “a nostalgia militante, a vibração da palavra de ordem, a glorificação dos afetos, os incentivos à luta da libertação, a laude às vítimas e aos sacrifícios por essa luta e aos heróis anónimos ” (p. 447). Aparece também uma referência demorada à obra ficcional, Corte Geral (2007), de Carlos Lopes.
Ao invés, no campo da literatura portuguesa da guerra colonial, que abarca um vasto leque de obras (dos romances e contos às memórias e ensaios, da poesia e reportagens à histórias, diários e autobiografias) que nos últimos anos têm vindo a público, constitui um repositório importante para a compreensão holística dessa fenómeno do século XX. Deste tipo de literatura sobressaem, naturalmente, quanto ao género, os romances e as memórias. Nos primeiros (romances de guerra) pontificam, nas décadas de 70, 80 e 90, os trabalhos de Álvaro Guerra, José Martins Garcia, Álamo Oliveira, Cristóvão de Aguiar, José Brás e de Luís Rosa. Já na década de 90 (nomeadamente em 1995), Armor Pires Mota editou Guiné: Sol e Sangue (1968), Cabo Donato: Pastor de Raparigas (1991), A Cubana que Dançava Flamenco (2008), e Estranha Noiva de Guerra (2010). No início do século, foi a vez de António Loja publicar “As Ausências de Deus” (2013).
No segundo caso (as memórias), são normalmente associados aos grandes nomes do 25 de abril, como Salgueiro Maia e Vasco Lourenço e ainda relatos do Comando Amadú Djaló, do Fuzileiro José Talhadas, do coronel paraquedista Moura Calheiros, do coronel José Pais e Manuel Barão da Cunha. Mas também há ensaios como o organizado por João de Melo e ensaios históricos da autoria de António Duarte Silva, ou o trabalho intitulado Guerra na Guiné, da autoria do já referenciado Hélio Felgas (1965). No que concerne às obras de História da Silva e Beja Santos assinalam sobretudo os trabalhos de Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes, José Freire Antunes e Fernando Policarpo. Nos diários apontam o Tarrafo (1970), de Armor Pires Mota, O Diário de JERO (1965), de José Eduardo Reis de Oliveira e o diário do soldado Inácio Maria Góis e Adeus, até ao meu regresso (2014), de Beja Santos.
Finalmente, um olhar sobre a política de cooperação entre Portugal e a Guiné-Bissau, nomeadamente na sua vertente cultural e linguística. A análise gira em torno de um documento publicado pelo Diogo Freitas do Amaral, enquanto Ministro de Negócios Estrangeiros, intitulado: Uma Visão Estratégica para a Cooperação Portuguesa (2006). Os autores argumentam que do documento se poderia extrair ensinamentos aplicáveis à Guiné, por exemplo, a nível da cooperação militar, designadamente na definição da política de defesa, da reorganização das Forças Armadas, por forma a cumprirem a sua função de promotores da estabilidade do Estado, formação e instrução militar e a adoção de códigos de conduta que visassem o respeito pelo Direito Internacional, pelos Direitos Humanos e pelo Direito Humanitário Internacional. Nesse mesmo capítulo foram elencando algumas das fragilidades do país relativamente à pobreza e à miséria endémicas, à questão da instabilidade político-militar e dos baixos índices de desenvolvimento humano. Quanto à língua portuguesa os autores lamentam o facto de se manter a custo, sendo para isso necessário redobrar esforços no sentido de garantir que ela continue a ser falada.
Ficamos naturalmente muito (bem) impressionados com a paciência e a minúcia que os autores colocaram na realização deste trabalho descomprometido, cuja leitura pode servir de introdução para a uma abordagem de todas as obras que nele foram (ou não) referenciadas com um outro olhar. E também pela forma arrumada/organizada, enquadrada e cronologicamente sequencial como o roteiro é apresentado, o que faz dele um trabalho em aberto passível de ser continuado. Neste sentido, o grande mérito do livro em apreciação é um convite despretensioso a uma leitura diversificada e a mais heterogénea possível sobre a Guiné (Bissau), país que os autores aprenderam a conhecer e a admirar, apesar de todas as vicissitudes e constrangimentos que tem sofrido ao longo da sua história mais recente. Contudo, auguram-lhe um futuro promissor, construído pelos próprios guineenses, pois só a eles, como asseguram os autores, “e a mais ninguém” cabe “uma decisão responsável e consequente quanto ao seu devir coletivo” (p. 530).
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Citation:
Julião Soares Sousa. Review of da Silva, Francisco Henriques; Mário Beja Santos, Da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau: Um roteiro.
H-Luso-Africa, H-Net Reviews.
March, 2016.
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