Inocencia Mata. A Suave Patria: Reflexoes politico-culturais sobre a sociedade sao-tomense. Edicoes Colibri, 2004. 146. (paper), ISBN 978-972-772-484-0.
Reviewed by Augusto Nascimento (Instituto de Investigação Científica Tropical, Lisbon)
Published on H-Luso-Africa (November, 2014)
Commissioned by Philip J. Havik (Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT))
Críticas de Longe ...
Este livro é uma colectânea de crónicas e artigos de opinião sobre o presente em São Tomé e Príncipe, difundidas pela RDP (Rádio Difusão Portuguesa) África, estação emissora escutada no arquipélago. Alguns dos textos são especialmente sugestivos. Uns abordam temas políticos, outros versam questões culturais, matéria à qual a autora dedica muita atenção. Noutros, ainda, valoriza-se a diáspora.
Dos vários tópicos referentes à política, destaquem-se a cultura e as práticas políticas num país insular com o petróleo no horizonte, o papel das elites e, ainda, a abertura do espaço político à participação cívica das populações. A autora põe em evidência os atropelos do Estado às liberdades dos cidadãos, distinguindo, como outros académicos, multipartidarismo de democracia, a qual requer um exercício pleno de uma "cidadania civil" (p. 28). Inocência Mata atribui esses atropelos à cultura política prevalecente que, insinua, não pode deixar de estar enviesada pelo facto de os protagonistas de hoje serem os mesmos de um passado autoritário recente. Ou a outras circunstâncias, como, por exemplo, a prevalência em S. Tomé e Príncipe da "ditadura da familiocracia" (p. 50). Mais relevante, a autora foca as causas do desânimo dos são-tomenses, a saber, o rumo da democracia (ou do multipartidarismo) e a prevalência da corrupção.
A pergunta que apetece colocar a uma tão cursada consciência crítica é a seguinte: por que razão pode a autora esperar a reversão do panorama que descreve e adivinha no tocante ao rumo do país?
Em que bases, que não na saudade da expatriação ou na idealização acrítica das "mais tradicionais formas de organização do espaço social do país" nos luchans e nos quintés--nomes locais de povoações e quintais, supostos lugares de socialização popular--pode a autora sustentar a ideia da "sageza dos sistemas de valores morais, éticos, espirituais" (pp. 26, 18)?
A cultura--ou os traços culturais--é a alavanca a partir da qual Mata pensa o curso da política no seu país. Mas não se detém na vertente política. Aborda também as outras facetas culturais, entre elas, as línguas, algumas das quais destinadas a perecer. Como sucede frequentemente nos autores situados nos espaços diaspóricos, a autora tende a transmitir uma visão da cultura da terra de origem como uma plataforma de remissão e um repositório de autenticidade necessária para a regeneração das práticas políticas.
Assim, algumas ideias romantizadas alternam com cruas constatações. Outras ideias correm apressadas, dir-se-ia, atrás do propósito da denúncia, umas vezes, desassombrada, outras, contida. Dessa motivação terão resultado algumas imprecisões: por exemplo, não foi só depois da inflexão neo-liberal que o Estado se demitiu da promoção da educação, da cultura e da língua. Trata-se de uma constatação alinhavada a partir da observação da degradação das políticas culturais comummente associada à mudança política de inícios dos anos 90. Porém, em bom rigor, essa degradação já era visível no regime monopartidário.
Na verdade, dado o apriorismo de que as receitas neo-liberais são necessariamente adversas aos africanos--qual extensão da dominação de outrora!, pensa-se--parece fácil censurar essa demissão do Estado e imputá-la ao rumo neo-liberal dos anos 90. Talvez também (por motivação afectiva, alvitrar-se-ia, e) por razões ideológicas, a autora não vislumbra a instrumentalização, primeiro, e a demissão, depois, do papel do Estado monopartidário na dinamização cultural. De resto, em S. Tomé e Príncipe, como em toda a parte, o âmbito e as modalidades de intervenção dos Estados nesse domínio são sempre muito discutíveis.
Outras ideias serão menos pertinentes. Veja-se, por exemplo, a da singularidade da cultura são-tomense, a qual não se pode inferir com base numa ou noutra manifestação particular.
Diga-se, quando em meados dos anos 80, a par do crescendo das dificuldades económicas, a exaltação política começou a ceder, a cultura--até então olhada de uma óptica transformista e sobranceira pelos políticos--passou a ser um foco de atenção de são-tomenses, incluindo a autora, que chegaram à noção de são-tomensidade ou santomensidade. Trata-se também de uma fórmula celebratória e plástica que, por exemplo, pode acolher a ideia de que os são-tomenses são idiossincraticamente predispostos ao diálogo e à democracia. Ora, como decorre do tom desiludido e crítico de alguns trechos da autora, asserções desse teor quedam por confirmar.
Onde pode residir um contributo para, renovando culturalmente o país, se insuflar um novo sopro de vida à democracia? Na diáspora, outro dos temas destas crónicas, onde se critica a marginalidade a que são votados os emigrantes e, com isso, o conhecimento e a inovação necessários ao futuro do país.
Mata é uma das mais argutas vozes são-tomenses sobre a evolução política do seu arquipélago natal. Mas alguns destes apontamentos--destinados a espicaçar consciências e brios, a provocar discussão e diálogo e, se quisermos, polémica--apenas são imagináveis na diáspora.
Em vários momentos a autora terá escolhido majorar os efeitos da sua intervenção, fazendo concessões no tocante à problematização de conceitos e noções--por exemplo, a referida singularidade cultural--para, dessa forma, obter um ganho de eficácia na sensibilização dos seus conterrâneos para os problemas do arquipélago. Afinal de contas, não estamos perante textos de recorte científico. Ainda assim, para os estudiosos das questões sociais em S. Tomé e Príncipe, tais textos são valiosos (inversamente, há que admiti-lo, nem todos os textos com pretensões científicas terão valia para serem considerados pela autora ou por quem pense politicamente o arquipélago).
Tentando uma possível contextualização deste livro, arriscaríamos dizer que ele procura valorizar as vozes na diáspora, que a autora quis potenciar, acreditando (ou fazendo por isso) na reversão da indiferença pela diáspora cultivada anos a fio pelo poder político. Sem discutir as imaginadas raízes históricas de tal atitude, reincidiríamos na pergunta: porque é que deveria o poder político em São Tomé ter uma atitude positiva e sapiente relativamente à emigração?
Em suma, este livro tem que ser lido como parte do movimento de recriação cultural próprio das diásporas, neste caso, com acentuado pendor crítico dada a recente história do país e a forte politização dos projectos sociais associados à independência. O livro contém análises lúcidas. Contudo, também por espelharem estados de alma, os textos mostram cedências. Alvitram-se possibilidades e vias futuras, que a análise fria e afectivamente desapegada não autoriza a inferir como prováveis, antes pelo contrário.
Fala-se de participação cívica, de criação de um debate, de pacificação social e política, de mobilização da diáspora. A ver vamos.
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Citation:
Augusto Nascimento. Review of Mata, Inocencia, A Suave Patria: Reflexoes politico-culturais sobre a sociedade sao-tomense.
H-Luso-Africa, H-Net Reviews.
November, 2014.
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