Luís de Brito, Carlos Nuno Castel-Branco, Sérgio Chichava, eds. Desafios para Moçambique. Maputo: IESE, 2011. 475 pp. (paper), ISBN 978-989-8464-04-0.
Reviewed by Ana Benard (Centro de Estudos Africanos, ISCTE-IUL)
Published on H-Luso-Africa (August, 2012)
Commissioned by Philip J. Havik (Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT))
Challenges for Mozambique
Se ...
O Instituto de Estudos Sociais e Económicos (IESE) de Moçambique tem desde a sua recente fundação (2007) uma vasta e fundamental produção científica de referência sobre um conjunto diversificado de problemáticas que abordam questões relacionadas com o desenvolvimento social e económico em Moçambique e na África Austral. Parte dessa produção científica tem por base as comunicações apresentadas nas Conferências internacionais que o IESE tem organizado em Maputo e que têm reunido um vasto e diversificado conjunto de investigadores, académicos e analistas de vários países que se dedicam a pesquisas centradas fundamentalmente, mas não exclusivamente, sobre Moçambique.
A par de um elevado conjunto de publicações sobre temáticas específicas, o IESE publicou desde 2010 dois livros dentro de uma série intitulada “Desafios para Moçambique”. Estas coletâneas reúnem num conjunto de trabalhos centrados em torno das questões mais prementes que Moçambique enfrenta ou--como refere Luís de Brito, na Introdução ao segundo livro desta série e que aqui se aborda--deve enfrentar, não só em cada um dos anos a que estes livros remetem mas de uma forma mais abrangente na actualidade. Assim, o IESE publicou em 2010 “Desafios para Moçambique, 2010”, em 2011 outra obra com um título equivalente e aguarda-se com expectativa o lançamento de mais um livro sobre o ano em curso.
O livro que aqui se recenseia “Desafios para Moçambique 2011”, organizado por quatro dos investigadores responsáveis por este Instituto--Luís de Brito, Carlos Nuno Castel-Branco, Sérgio Chichava e António Francisco--reúne trabalhos organizados em 15 capítulos e produzidos por um total de 18 autores, sendo, a grande maioria, moçambicanos.
Dividido em quatro partes intituladas, respectivamente, Política, Economia, Sociedade e Moçambique e o Mundo, este livro abrange um vasto leque de temáticas. Na primeira parte são tratados temas como a descentralização politica, o Estado, a democracia, a cidadania e ainda questões eleitorais e municipais. Na segunda parte, os diferentes autores analisam questões fiscais, problemáticas relacionadas com as economias domésticas e ainda temas relacionados com a dívida, os serviços financeiros e a produção. A terceira parte, centra-se nas questões sociais e temas como a demografia, a protecção social e as políticas ligadas ao HIV são objecto de reflexão. Na quarta e última parte, intitulada “Moçambique e o Mundo” as temáticas da cooperação, da segurança política, das economias emergentes ou questões relacionadas com dependência da ajuda externa são objecto de três capítulos.
Respondendo ao título do livro a maioria dos autores dos capítulos reunidos nesta obra colocam sobre as temáticas que abordam um conjunto de desafios relacionados com problemáticas da actualidade moçambicana. Esses desafios são, no entanto, colocados de diferentes modos. Se uns autores os colocam em termos de potenciais soluções para resolução de determinados problemas, outros colocam como desafio a necessidade de debates mais amplo e inclusivos, outros, ainda, apresentam-nos como desafios mais globais de transformação do funcionamento das instituições, não só nacionais mas internacionais e ainda de verdadeiras “revoluções” nas estruturas políticas, económicas e sociais da Sociedade e do Estado moçambicano.
Muitos dos artigos aqui apresentados mereceriam recensões críticas independentes ou que esta recensão extravasasse em muito o número de páginas que se espera que uma recensão tenha. Na impossibilidade de qualquer destas opções, opta-se por resumir de forma mais desenvolvida os primeiros cinco artigos desta coletânea, e referir de forma mais geral os restantes. Esperando assim suscitar no autor o interesse por uma leitura aprofundada de toda a obra que constituí, no seu conjunto, uma das mais importantes reflexões sobre Moçambique na actualidade. A sua leitura contribuirá certamente para levar o autor para uma reflexão mais ampla sobre os processos e os sentidos do “desenvolvimento” não só em Moçambique mas no mundo em geral, nesta época de “crise” e de profundas transformações nas relações e dinâmicas internacionais.
Embora focalizados nas áreas específicas que dão o nome a cada uma das quatro partes em que esta vasta obra se divide, os diferentes capítulos extravasam normalmente as questões meramente políticas, económicas, sociais ou centradas nas relações de Moçambique com o mundo, das partes onde se inserem e remetem-nos para temáticas mais abrangentes onde o político, o económico, o social e as relações externas se cruzam e se influenciam mutuamente. Podendo ser umas das conclusões gerais mais importantes desta obra, exactamente, a constatação da impossibilidade de soluções isoladas para os diferentes problemas que Moçambique enfrenta.
O primeiro dos artigos que abre esta coletânea, integrado na parte sobre Política, inicia-se com uma referência ao processo singular que deu origem aos Estados Africanos e ao facto de estes terem sido impostos de “fora” e relaciona três temas: Estado, Descentralização e Cidadania. O seu autor, João Óscar Monteiro, coloca no título do seu capítulo a questão que lhe sugere esta complexa relação--“Equação possível ou imperativa”--e que guia a sua reflexão. Reflectindo na formação e evolução dos Estados africanos, o autor centra-se, posteriormente, nas formas através das quais o processo de descentralização está a ser conduzido, afirmando que embora o conceito de descentralização tenha uma conotação favorável, actualmente “fez parte da panóplia crítica dos poderes excessivos do Estado” (p. 25) sendo também “gerador de receios de fragmentação” (p. 26). Lembra-nos que a descentralização também está identificada com autarcização e que o grau de descentralização é geralmente quantificado através do ritmo de criação de autarquias. O autor crítica o facto de esse processo ser imposto de cima para baixo (“iniciado pelo Governo e negociado em sede parlamentar” (p. 27) e pergunta se não seria possível dar “mais relevo à vontade popular” e fazer resultar a criação das autarquias da capacidade dos cidadãos se organizarem a nível local e “tomarem conta dos seus assuntos” (p. 27). Por outro lado, o autor afirma que existe a tendência de se considerar que apenas a descentralização autárquica é descentralização quando, segundo ele, existe também em Moçambique uma “descentralização administrativa participada” (p. 29) no caso em que as leis consagram o papel das comunidades na gestão dos seus recursos. O autor enumera no final do seu artigo os principais desafios que o processo de descentralização enfrenta em Moçambique.
O conjunto de desafios colocados por este autor contêm--como muitos dos desafios que ao longo deste livro são colocados por vários autores--um conjunto de premissas que necessitam de ser ultrapassados para que os desafios colocados o possam deixar de ser. Essas desejáveis mudanças passam por ver a realidade (neste caso concreto a descentralização) sobre outros prismas (como um processo que vai “para além de mudanças entre escalões administrativos,” p. 33), ultrapassando diversos obstáculos e receios (como sejam o ver a descentralização como fragmentação) e incapacidades (dos diferentes órgãos governamentais provinciais e distritais) e ainda o desafio de saber sé possível vencer a “mentalidade dirigista” (p. 34).
O segundo artigo intitulado “’Transformações sem mudanças?’ Os conselhos municipais e os desafios da institucionalização democrática em Moçambique”, da autoria de Salvador Cadete Forquilha e Aslak Orre, coloca dois importantes desafios relacionados, igualmente, com a descentralização politica e com os poderes e as formas de governação local em Moçambique. No primeiro dos desafios, os autores abordam os processos de inclusão políticos a nível local e a representatividade dos conselhos locais e, no segundo desafio, equacionam as possibilidades de estes órgãos de poder locais, os “conselhos locais”, se tornarem em órgãos efectivos de governação local. Na sua conclusão, os autores resumem as principais constatações a que a sua análise sobre a “institucionalização democrática de Moçambique” a partir das “dinâmicas e logicas de funcionamento dos espaços de participação criados no âmbito do processo de democratização” ao nível dos distritos (p. 36), chega e afirmam que, embora o processo de democratização iniciado nos anos de 1990 tenha implicado a existência de novas instituições, estas não trouxeram mudanças significativas pois a “estruturação do campo politico … conduziu à constituição de um sistema de partido dominante, cristalizado numa cada vez mais captura do Estado pelo partido do poder” (p. 51) que domina as instituições politicas a nível distrital e que os conselhos locais têm um papel marginal nas decisões de nível local não sendo instrumentos políticos participativos e inclusivos.
No terceiro artigo o tema da descentralização continua a ser abordado. O autor, Domingos do Rosário, centra a sua análise num estudo de caso, o do Município de Nacala, onde analisa os comportamentos dos dois partidos principais, a Frelimo e a Renamo na luta pelo poder municipal em Nacala Porto. Demonstra as dificuldades da Ferlimo em aceitar a alternância politica e o descreve como a Renamo, embora iniciando a sua acção governativa de forma relativamente aberta, acaba por reproduzir as práticas do estado neopatrimonial e o clientelismo. Neste artigo, o autor não nos apresenta nenhum “desafio” limitando-se a analisar o contexto politico descrito e chegando à conclusão que a Frelimo “não está preparada para estar na oposição” (p. 88) e que a descentralização não está a gerar pluralismos políticos pois a Frelimo consegue “instrumentalizar os recursos para fortificar as suas bases locais”(p. 88).
O quarto artigo centra-se num conjunto de propostas de revisão da legislação eleitoral nos campos da composição e processo de formação da Comissão Nacional de Eleições, no recenseamento eleitoral, nas assembleias de voto e na votação, contagem e apuramento dos resultados. O autor, Luís de Brito, espera contribuir com essas propostas para o debate e a revisão dessa legislação. Segundo o autor, um dos motivos principais porque o processo de revisão da legislação eleitoral tem tido um efeito “praticamente nulo” (p. 106), tem sido a falta de uma perspectiva global que consiga ultrapassar as discussões individualizadas sobre cada um dos artigos muito centradas nos “interesses mais imediatos dos partidos” (p. 106). O facto de a legislação eleitoral de 2009 ter sido aprovada apenas pela Frelimo e de tal ter suscitado uma “crise diplomática” (p. 107), constitui, nas palavras do autor, um factor de esperança podendo vir a gerar “um real e amplo debate público” (p. 107) para o qual o autor espera que este capítulo venha a contribuir.
A segunda parte desta coletânea, designada Economia, inclui cinco artigos que equacionam questões relacionadas com as diferentes opções económicas que se colocam a Moçambique. A essas opções não são alheios interesses e dependências externas e interesses instalados de diferentes grupos sociais.
Esta parte inicia-se com uma análise de Carlos Nuno Castel-Branco, sobre a questão da mobilização dos recursos domésticos e as formas através das quais essa mobilização pode ser feita, apresentando, o autor, o debate que tal tem gerado em Moçambique, as motivações que o impulsionam e as questões que levanta. O autor apresenta seis grandes questões/motivações: a substituição da ajuda externa; a redução da interferência politica; o aumento da receita e mudança da estrutura fiscal; a eliminação de benefícios fiscais redundantes; o que fazer com os recursos naturais; e, por último, aborda os perigos e desafios do endividamento público. Conclui que “do ponto de vista da construção de uma economia diversificada e articulada a tributação do capital parece ser a melhor opção para mobilizar recursos domésticos” (p.122). No entanto, o autor, ao interrogar-se sobre as razões que explicam a não opção por esta via, refere que estas se predem com o facto de a “função principal do Estado moçambicano na fase actual” ser o de “facilitar o processo de acumulação de capital das classes capitalistas emergentes … na completa dependência das dinâmicas e interesses do capital multinacional, através da expropriação e controle dos recursos naturais a baixo custo para o capital” (p. 123). Por último refere que “o debate sobre opções de financiamento do Estado é também sobre opções e padrões e reprodução social” (p. 128). Se o segundo artigo desta parte reforça a ideia que o aumento das receitas do Estado deve ser feito por via da tributação dos rendimentos do capital (em especial das grandes empresas que gozam de benefícios fiscais), o terceiro artigo levanta a possibilidade de esse financiamento poder vir a ser feito através do endividamento e reflecte sobre os diferentes tipos de endividamento possíveis.
O último artigo que se insere nesta segunda parte do livro é da autoria de Zaque Sande e foi publicado a título póstumo (o livro é-lhe dedicado). Este artigo aborda a polémica questão dos “7 milhões” e coloca dois desafios. No primeiro, o autor, refere que importa relacionar o impacto dos “7 milhões” com o alargamento, a diversificação e expansão da base produtiva local na estratégia de investimento público e privado e na estratégia de expansão do sistema financeiro em Moçambique (p. 223), e no segundo desafio refere que esta a iniciativa “precisa de gerar uma base de dados de informação de forma a permitir análises detalhadas” (p. 224).
A terceira parte desta obra engloba três artigos agrupados em torno do tema Sociedade. Nos dois primeiros capítulos a questão demográfica enquanto fundamental forma de protecção social em Moçambique é abordada. No primeiro dos artigos, o autor, António Francisco, assinala o papel determinante que os mecanismos demográficos, a par com as redes familiares e comunitárias, desempenham na protecção social em Moçambique e conclui que: “ter muitos filhos continua a ser a principal forma de protecção social ao dispor da maioria da população moçambicana” (pp. 232-233). O artigo analisa o processo de transição demográfico em Moçambique e o autor pergunta “quantos filhos representam um número demasiado? E qual é o nível de desperdício demográfico da actual população moçambicana?” (p. 234) e responde: “considerando que a mulher moçambicana tem actualmente uma média de 5,7 filhos … e como o sucesso reprodutivo dapopulação depende do número de filhos que realmente sobrevivem até á idade reprodutiva … o número de filhos necessários para garantir a reposição é de … 3,9 filhos … significa que, nas actuais condições de mortalidade em Moçambique, a ineficiência reprodutiva da população moçambicana ronda os dois filhos por mulher, ou seja um desperdício demográfico” (p. 259).
O terceiro artigo desta terceira parte aborda questões relacionadas com o HIV-SIDA e argumenta-se que a ineficácia das políticas de luta contra esta epidemia em Moçambique se deve, em muito, à sua desadequação à diversidade sociocultural do país. Este argumento não é novo, dizemos nós, e já outros autores o demonstraram (ver por exemplo a tese de doutoramento de Cristiano Matsinhe de 2005) e tal parece que está a ser tido em conta nos planos estratégicos de combate ao HIV-SIDA. O desafio, como a autora argumenta, é conseguir implementar no terreno esta nova abordagem. E acrescentamos nós, importa também ter consciência que a diversidade sociocultural não existe apenas nas populações alvo das estratégias e das políticas mas nos agentes que as implementam, e que este aspecto não explica, por si só, tudo, como bem demostrou o autor que acima citamos.
Esta obra termina com a parte intitulada “Moçambique e o Mundo” que reúne três artigos. O primeiro aborda as políticas de cooperação ao nível da segurança pública na região da SADC, e explica a relativa pouca atenção que este assunto tem suscitado pela sua complexidade e até por diferentes significados que têm sido atribuídos ao termo segurança nas últimas décadas. O autor, João Paulo Borges Coelho, considera como importantes desafios neste campo a reforma e a capacitação das forças policiais num processo que envolva a participação da sociedade civil sobretudo ao nível das organizações de direitos humanos. O segundo artigo aborda a cooperação entre Moçambique e alguns dos países emergentes (China, India, Brasil) no campo da agricultura e concluí que embora haja muitas “promessas” e planos, até agora estes têm tido uma dimensão reduzida e a cooperação com esses países tem sido essencialmente na indústria extractiva e na construção. O último dos artigos desta coletânea centra-se nas questões da ajuda externa e das dependências que esta gera a todos os níveis e argumenta que este ciclo que liga a Ajuda externa à dependência da Ajuda só pode ser interrompido se a Ajuda for usada para a “construção de capacidades produtivas socialmente eficazes, eficientes, diversificadas, articuladas e sustentáveis” (p. 456)--ou seja, dizemos nós, tudo aquilo que a Ajuda raramente gera porque também raramente o é!
Ao longo desta obra lemos interessantíssimos e fundamentados artigos que analisam realidades complexas, equacionam questões, constatam problemas e salientam a complexidade do social e a perigo da sua simplificação. São também apontados inúmeros desafios, possíveis soluções, se houver planos, estratégias politicas, vontade de mudança e a definição das correctas economias políticas de desenvolvimento. Por todos esses motivos este livro sobre desafios, desafia-nos, inquieta-nos e assusta-nos mas também nos dá esperança pois a possibilidade de mudança é real e está “lá” se ...
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Citation:
Ana Benard. Review of de Brito, Luís; Castel-Branco, Carlos Nuno; Chichava, Sérgio, eds., Desafios para Moçambique.
H-Luso-Africa, H-Net Reviews.
August, 2012.
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