Ruy Duarte de Carvalho. A câmara, a escrita e a coisa dita...: fitas, textos e palestras. Lisboa: Livros Cotovia, 2008. 459 pp. ISBN 978-972-795-235-9.
Reviewed by Ana Paula Tavares (Universidade de Lisboa & Arquivo Nacional de Angola)
Published on H-Luso-Africa (May, 2010)
Commissioned by Philip J. Havik (Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT))
Escrever a Nação
A criação de um estado (acto jurídico) pressupõe a urdidura de uma nação (processo cultural).
--Ruy Duarte de Carvalho, Ana a Manda os filhos da rede
Vinte anos depois da publicação deste trabalho, inicialmente tese de doutoramento do 3º ciclo defendida na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em 1986 e publicada em Lisboa em 1989, dele retiramos a epígrafe como fio que conduz a uma revisita de algumas das articulações mais complexas e pedagogicamente mais conseguidas de quem “atento desde sempre às falas do lugar”[1] enuncia os princípios da inteligibilidade que podem ajudar a perceber Angola, seus actos fundacionais e a proclamação pública que os acrescenta.
O livro de que nos ocupamos agora reúne ensaios produzidos em e sobre Angola que o autor organiza por ordem cronológica do mais recente (2005) ao mais antigo (1982) dando nova ordem de leitura a textos já publicados anteriormente[2] aos quais acrescenta produção posterior resultante da sua participação em palestras, colóquios e lições.
Importa abrir um lugar ao cinema não para falar de filmes (que são muitos e variados) mas sim de toda a reflexão teórica em torna das relações entre cinema e antropologia e assim resumir o que o autor chamou de “urgências” (p. 389), a primeira: “produzir filmes, cientificamente correctos, socialmente operantes, cinematograficamente válidos e eticamente honestos” (p. 450), labor a que se propôs logo após a independência nacional ao mesmo tempo que recuperarava a jeep e de máquina de filmar nas mãos o território que cabia dentro da nação.
Desde sempre o leitor sente a noção de estranhamento relacionada com a estratégia analítica a permitir formular as razões do cinema e as suas relações com a poesia, a tradição oral, o filmador e o filmado. É a abertura do texto ao mundo circundante, fazendo uso de todo o conhecimento para construir uma gramática das inquietações e elaborar uma obra que reconhecemos impar na maneira original como ainda hoje nos interroga, ausculta e esclarece.
Assumindo desde sempre um ‘eu’ sujeito, a consciência dentro do texto, Ruy Duarte de Carvalho escreve as circunstâncias inquietantes que vê e de que é informado e que o levam a produzir “mais do que honestos relatórios” a seduzir pela escrita os eventuais consumidores dos seus textos.
Escrever ensaios é tarefa que o preocupa, questão antiga e controversa. Escrever ensaio sobre a pátria que se constrói implica adesão ao desafio hermenêutico e também suor, lágrimas e sangue, mexer por dentro, cavar a própria essência, escolher o que se diz e o que não se dizendo fica dito na mesma para quem “o quiser apanhar”. Escrever o presente leva, imperativos do rigor do método, a avanços e recuos na formulação mas ainda e sempre à libertação de novos espaços de pensamento, na elaboração das hipóteses e dos caminhos para chegar e verificar para além das teses.
Por isso “desfolha fotocópias” (p. 240) e produz durante os anos oitenta teoria sobre identidades não para preencher a folha de serviço que então se impunha, mas mais uma vez para resolver “urgências” e traçar o seu sentido mais profundo, tratando de separar (o que era para separar) da ganga das conotações políticas e da terminologia das relações conflituais, para a partir de geografias particulares escolher a afirmação da diferença.
O direito à exigência, território ameaçador, tentação do abismo levou-o a como autor ordenar nós temáticos e cruzar campos do saber entre a antropologia e a história para escrever sobre poder e poderes, tradição e modernidade e assim fazer ouvir uma fala para além do discurso vazio e mistificador. Recupera categorias filosóficas para as submeter ao rigor da “observação directa”, para lá da vulgata das afirmações identitárias “nosso” ou “nossa” e dos contornos de uma imago mundi com os limites de um lugar de nascimento. As teorias alargam-se assim a preocupações internas mas a exigir do intelectual um esforço para colocar por ordem linguagem e comunicação para que o fio do texto se constituísse iluminação e resposta para todas as ditas “urgências”:
“Angola é grande, vasta, diversa, múltipla e complexa no que diz respeito a formações sociais”, afirma Ruy Duarte enquanto reúne um “dicionário do arrepio” cujas entradas se situam entre a observação e a acção, os exercícios de cidadania e a análise ( texto de 1995). O efeito multiplicador encontra-se na variedade dos textos e na assunção de um papel de actor social, interveniente, directo: angolano, poeta, homem da ciência.
E os controversos anos noventa entram na escrita de autor a sublinhar a existência de temporalidades discordantes, de ritmos da história a compassos diferentes, para melhor perceber como todos os tempos somam o presente da nação, totalidade e infinito, e lugar da categoria “povo angolano” fixada pelos poderes todos a fazer coincidir um enunciado e um território.
Por isso a sua escrita se detém na diversidade, quer se convoque o terreno da história, para acompanhar a entrada faseada das diferentes formações sociais no conceito colonial que as cartas impõem desde o século XIX com as rigorosas fronteiras dos grupos étnicos, quer se eleja como objecto de estudo as diferentes dinâmicas que desafiam os contextos e impõem para compreender a nação angolana e encontrar-lhe uma memória forjada em condições adversas e extremas.
As marcas da etnia e a especial situação de insularização de um território de que se faz especialista permitem a Ruy Duarte visitar a história, sem nunca assumir o ofício de historiador, pois esse afasta o especialista da vida, dos homens e dos problemas. Conhece as fontes, as orais e escritas e outros processos e assim tempera o texto para lá de uma noção convencional de fronteira, a da Conferência de Berlim e as outras, nesses convénios intermináveis entre detentores de poderes alheios para olhar e estudar esses espaços vazios que atraem todos e criam novas relações de dependência entre recém chegados e seus vizinhos. Estes fenómenos são visíveis em toda a história de Angola, onde por vezes a fronteira não é o lugar que divide mas aquele que permite a formação de uma nova sociedade com complexas relações de capilaridade com as anteriores. Assim fenómenos múltiplos acontecem a sul mas também dentro das urbes onde se configuram novos espaços físicos e novas vulnerabilidades a mudar o significado da palavra museke (normalmente usado para significar o bairro de lata junto à cidade) e o convencionalismo da sua representação. A modificação das sociedades rurais, transpostas para o tecido da urbe, os vasos comunicantes estabelecidos pelas leis da sobrevivência, as línguas francas em uso, as operativas identidades colectivas que mantêm por vezes a coesão do grupo e a forma como este disso tira partido em situação de crise.
E a violência do confronto impõe novas cautelas, para lá do confronto directo, da radiografia da morte, de olhar o sofrimento dos outros e dele falar ao mundo. A guerra é muita e estendida no tempo e múltipla e variada, e determina a mudança de todos os implicados. Essa mudança e a forma como ela se inscreve e a determinado momento escreve a nação é o labor de que se ocupa para nos dar textos que analisam todos os lados da guerra, polissemias e contextos a ser olhados do particular para o geral e estabelece os eixos que explicam o problema da crise geral e do seu estudo. Permite-se assim, com propriedade, tratar não a guerra em Angola (que essa é antiga e antecede Paulo Dias de Novais e a nossa Rainha Ginga, continua até à revolta Kuvale de 1940, arde de 1961 a 1976, recomeça em 1977 e prolonga-se anos noventa a fora até ao séc. XXI), mas Angola na Guerra, tornando Angola no referente semântico fundamental e partir daí para analisar as questões da violência estrutural e de como elas atingem todos os Angolanos no quadro de uma implicação global.
Gostaria de terminar com a contribuição para uma teoria do texto, resumida nas dimensões novas que Ruy Duarte encontra para a “Escrita” “Fala” e “Voz” (texto de 2005 e que abre o livro de que nos ocupamos) resume no fundo o regresso do autor à fabula” e à sua resistência e persistência nas questões da linguagem, nos nós temáticos que antecedem a explicação do sujeito enquanto ser do tempo. Em textos anteriores (fitas, textos e palestras, subtítulo da obra de que nos ocupamos e da publicação de 1987) tinha o Ruy Duarte já alertado para o enorme ruído por detrás dos conceitos, para antigas vozes que antecederam o estado, estando sempre dentro da nação.
Notes
[1]. Ruy Duarte de Carvalho, Hábito da Terra (Luanda: UEA,1988).
[2]. Ruy Duarte de Carvalho, A Câmara, a escrita e a coisa dita… Fitas, textos e palestras (Luanda: INALD, 1987).
If there is additional discussion of this review, you may access it through the network, at: https://networks.h-net.org/h-luso-africa.
Citation:
Ana Paula Tavares. Review of Carvalho, Ruy Duarte de, A câmara, a escrita e a coisa dita...: fitas, textos e palestras.
H-Luso-Africa, H-Net Reviews.
May, 2010.
URL: http://www.h-net.org/reviews/showrev.php?id=29991
This work is licensed under a Creative Commons Attribution-Noncommercial-No Derivative Works 3.0 United States License. |